domingo, 26 de julho de 2009

¿ Criar + Atividade ?


Por Que Criatividade é tão importante?

Será que todos nós somos criativos?

É algo que vem de berço ou se aprende?

Pode ser cultivada, incentivada?

Dá para ser Criativo em uma Empresa não Criativa?

O que é afinal Criatividade?



São muitas perguntas, grande parte delas com várias respostas possíveis, e nenhuma resposta pode ser considerada a "melhor". Criatividade é o típico conceito que resiste a definições e durante muito tempo temos visto aparecer diversos livros e manuais tentando apresentar visões pessoais (e algumas vezes idiosincráticas) sobre o assunto. Nosso enfoque neste pequeno artigo é mostrar que Criatividade pode ser encarada de uma maneira bastante diferente das tradicionais e que essa forma é mais fundamentada do que muitas outras alternativas.



Criatividade de Vários Pontos de Vista
Quando a coisa é difícil de definir ou entender, um exercício interessante é observá-la sob diversos ângulos. É o que faremos aqui, através de enfoques bastante distantes um do outro. Todos tentam iluminar a questão "O que é Criatividade?".
Sob o ponto de vista humanoCriatividade é a obtenção de novos arranjos de idéias e conceitos já existentes formando novas táticas ou estruturas que resolvam um problema de forma incomum, ou obtenham resultados de valor para um indivíduo ou uma sociedade. Criatividade pode também fazer aparecer resultados de valor estético ou perceptual que tenham como característica principal uma distinção forte em relação às "idéias convencionais".
Sob o ponto de vista cognitivoCriatividade é o nome dado a um grupo de processos que procura variações em um espaço de conceitos de forma a obter novas e inéditas formas de agrupamento, em geral selecionadas por valor (ou seja, possuem valor superior às estruturas já disponíveis, quando consideradas separadamente). Podem também ter valor similar às coisas que já se dispunha antes mas representam áreas inexploradas do espaço conceitual (nunca usadas antes).
Sob o ponto de vista neurocientíficoÉ o conjunto de atividades exercidas pelo cérebro na busca de padrões que provoquem a identificação perceptual de novos objetos que, mesmo usando "pedaços" de estruturas perceptuais antigas, apresentem uma peculiar ressonância, caracterizadora do "novo valioso", digno de atenção.
Sob o ponto de vista computacionalÉ o conjunto de processos cujo objetivo principal é obter novas formas de arranjo de estruturas conceituais e informacionais de maneira a reduzir (em tamanho) a representação de novas informações, através da formação de blocos coerentes e previamente inexistentes.
Como quase todas as definições, estas são opacas e difíceis de entender, mas servem para demonstrar como é vasto o repertório de idéias que podem ser postas em conjunto para tentar explicar o que é o fenômeno criativo. Há, no entanto, uma grande tendência em se "assustar" com essas idéias e dessa forma evitar compreendê-las, ficando com aquelas noções batidas de "preparação, incubação, insight". Não temos espaço neste artigo para mostrar porque essas idéias velhas não vão muito longe. Basta dizer que a grande maioria dos autores de livros e manuais de Criatividade se contentam em expor "técnicas" com variações dessas estratégias e com isso parecem se satisfazer com as idéias que historicamente tem sido usadas para explorar esse assunto. No mínimo, isto pode ser dito como muito pouco criativo da parte deles. Temos que ser criativos para pensar sobre criatividade.
Propomos pensar sobre Criatividade a partir de outro enfoque: para ser mais criativo, temos que entender porque o cérebro humano é naturalmente criativo, porque as crianças são espontaneamente criativas.
Temos que compreender como funciona a mente humana, em seus aspectos mais cognitivos e perceptuais, não através de "chutes" sobre como pensamos, mas sim através do acompanhamento criterioso das descobertas científicas acerca da mente e do cérebro humanos. Nunca houve tantas informações sobre esse assunto quanto tivemos nos últimos dez anos.



Criatividade Auxilia Percepção e Vice Versa
A Ciência Cognitiva estuda, entre outras coisas, como o cérebro humano desenvolve progressivamente sua capacidade perceptual. Uma criança aprende com o tempo a perceber expressões faciais de seus pais quando eles estão, por exemplo, zangados ou impacientes. A percepção é uma atividade contínua do cérebro e para identificar os diversos objetos e eventos que uma criança tem que lidar, muito de seu aprendizado depende de correlacionar coisas que acontecem em frente a seus olhos, ouvidos e mãos. Para executar essa correlação a criança precisa ser ativa, precisa interagir com o ambiente e testar seus limites, precisa verificar se aquilo que aconteceu ontem também vai acontecer hoje. Isto é, na essência, um dos procedimentos fundamentais da Criatividade, o desenvolvimento (através de testes e observação) de uma capacidade perceptual apurada através da atitude ativa.
Com o tempo, a criança se desenvolve e vai querer atingir novos objetivos.
Agora ela já está mais apta a atuar sobre o mundo e teve tempo de desenvolver um aparelho perceptual suficientemente poderoso para ajudá-la na tentativa de satisfazer seus anseios. Um deles pode ser, por exemplo, alcançar aquele bolo que está ali sobre a mesa. Sua percepção lhe informa que um banquinho próximo à mesa lhe daria suporte para quase alcançar o topo dela. Falta apenas um pouco mais. Então, sua criatividade vai impeli-la a observar ao redor e ver se há algo mais que possa lhe "fornecer" o tipo de suporte de que necessita para elevá-la além da altura do banco. Ao encontrar uma caixa de brinquedos, um "estalo" ocorre: se colocada sobre o banquinho, isto lhe permitirá atingir a mesa e assim saborear o bolo.
Este ato criativo no caso da criança tem dois componentes que eu gostaria de destacar. O primeiro é a solução inovadora (a criança não "sabia" desta solução, ela a concebeu, principalmente porque sua percepção "juntou partes"). Mas há também o fator "risco", pois qualquer adulto que estivesse presente iria desincentivar a criança porque talvez a caixa de brinquedos sobre o banquinho fosse instável e assim a criança poderia cair. Temos aqui dois itens que influenciam bastante a criatividade:
1) A necessidade de um lado (em conjunto com a habilidade perceptual) fornecem impulso positivo para o desenvolvimento de soluções criativas. Para ser criativo, devemos ter claro em nossa mente o objetivo (mesmo que vago e incerto) que queremos atingir.
2) A crítica dos pais fornece reforço negativo (neste caso, apropriado), pois há a imposição de uma regra que "corta" o fluxo criativo de pensamento (essa regra, na verdade, só tem significado para os pais, para a criança não significa nada, pois ela não sabe do perigo de cair de apoios instáveis, só irá aprender quando cair uma vez).
Obviamente, a regra dos pais é bem-vinda pois evita um acidente desagradável. Mas se os pais não esclarecem à criança o porquê da regra, isto fará sobrar em sua pequena mente apenas a parte negativa da regra, aquela que tolhe a iniciativa sem dizer qual a causa disso. É fundamental que todos nós entendamos o porquê das coisas.
Quando adultos, mantemos boa parte dessas restrições impostas sem explicação em nossas cabeças.
Elas nos colocam regras, normas, procedimentos, padrões, bloqueios que agem como os pais originais agiram em relação à criança. À primeira vista, isto pode parecer tão útil quanto a situação original da criança: as regras e procedimentos foram desenhados porque eles deram certo no passado (evitam quedas dolorosas). As regras que nos ensinaram na escola e na faculdade também tiveram certo cuidado em sua confecção. Então como justificar a criatividade (quebra de regras) neste caso? Vamos nos concentrar agora no porque é necessário quebrar regras.
Criatividade e Expansão de Potencialidade
A grande diferença entre as regras dos pais em relação à criança e as regras e procedimentos aprendidos na faculdade e no trabalho em relação aos adultos vem do fato de que os pais da criança estão totalmente certos de que há um risco alto em se apoiar em uma caixa de brinquedos instável. Já as regras dos adultos são apenas coisas que funcionaram bem até hoje. Entretanto, não há ninguém que consiga justificar porque elas irão funcionar bem amanhã (isto é parte de uma discussão filosófica sobre a justificação de procedimentos indutivos). Além disso, se a regra é apresentada a nós sem nenhuma explicação convincente, então ela pode ter sido desenvolvida por força de generalizações imperfeitas. O mundo evolui, descobrimos novas coisas a todo o instante. Confiar cegamente nas regras antigas significa desprezar o potencial criado pelas descobertas recentes.
Esta é mais uma das observações que fazemos para justificar porque temos que entender as coisas. Não basta sabermos sobre fatos, temos que captar a essência de suas interligações. Em outras palavras, em vez de ensinar a nossas crianças o nome dos afluentes do rio Amazonas (e de cobrar esses nomes em provas, valendo nota!), elas deveriam ser expostas ao ciclo de eventos que ocorrem por causa da chuva, deslocamento de águas dos rios para os mares e posterior evaporação.
Esse conhecimento (conhecimento causal) é muito mais importante do que nomes e dados factuais, pois permite a pessoa pensar sobre as coisas e usar o pensamento para melhorar sua vida (via criatividade!).
Há utilidade também em dividirmos a criatividade em duas áreas (como faz Margaret Boden): a criatividade psicológica, na qual aquilo que é inventado é novidade para a pessoa, mas não para a humanidade (ou seja, alguém já fez isso no passado) e a criatividade histórica, na qual a criação é inédita em termos universais. As crianças tem em geral criatividade psicológica, é novo para elas mas já foi feito muitas vezes no passado. Mas como adultos em geral estamos à cata de criações históricas, coisas que nunca foram tentadas (ao menos na exata situação contextual em que estamos). Portanto, estamos à procura justamente de criações para as quais não existem regras definidas previamente, ou seja, as regras atuais não valem. Entende porque temos que quebrar regras?
Portanto, Criatividade serve muito para explorarmos o desconhecido, e para isso precisamos ter em mente que frequentemente vamos errar. Tentar e errar faz parte do processo criativo e um dos pontos básicos para ampliarmos nosso potencial criativo é justamente reconsiderar nosso "medo" de errar, talvez transformando a palavra em "testar".
Veja que a cada "teste" malsucedido que fazemos conseguimos novos elementos para nosso aparelho perceptual (mais ligações de causa/efeito, mais identificação de correlações, mais micro-regras unindo partes do problema a outras partes, mais conhecimento sobre partes montando um todo, etc). Por isso se diz que muito se aprende com os erros. Eles enriquecem nossa percepção de forma que possamos ter melhores chances de simular o mundo em nossas mentes em futuras situações.
Criar é Ter Inteligência Para Simular
Uma das características mais marcantes dos "seres inteligentes" que habitam este planeta é a habilidade de aprender e antever consequências de atos imaginados. Isto nos permite fazer "modelos" do mundo. Conseguimos "rodar" um programa simulador em nossa mente. Uma criança desde cedo aprende a entender o que significa a força da gravidade e a partir daí irá ganhar uma forma virtual de testar mentalmente uma determinada ação física, verificando se ela é segura ou não antes de executá-la. As crianças acabam descobrindo que se colocar o dedinho no fogo a consequência é dor lancinante. Depois disso, elas podem antever a consequência do ato de estender seu dedinho mental no fogo virtual e sentir assim o efeito virtual correspondente, sem ter que passar pelo efeito físico.
Passamos boa parte de nossa vida aprendendo como melhorar nossa simulação do mundo exterior. Modelamos o mundo físico, modelamos as emoções das pessoas com as quais convivemos, modelamos a empresa em que trabalhamos, o governo, nossos vizinhos, nosso carro, o trânsito, etc. Boa parte de nosso raciocínio é meramente uma simulação de grandes cadeias causais (isto causa aquilo que causa aquilo...). Podemos dizer que essa sequência de inferências são representantes das "regras" que usamos no dia-a-dia, equivalentes às regras mais simples como aquela que diz que quando vou atravessar uma rua, devo olhar para os dois lados. Essa regra é tão forte que chega ao caráter de comportamento condicionado. Tudo isto é muito, muito útil, pois poupa-nos tempo, automatiza procedimentos rotineiros, aumenta nossas margens de acerto e evita erros fatais. Há poucas (se é que há alguma!) vantagem em ser criativo no atravessar a rua.
Mas há um lado ruim dessa tática: essas regras também nos fazem ficar acomodados e por isso evitamos procurar novas possibilidades. Para sermos criativos, temos que estar dispostos a quebrar (mesmo que apenas mentalmente) várias dessas sequências pré-programadas e dessa forma rodar nossa simulação do mundo com um conjunto alterado de regras. Mas para que mesmo fazer isso? Vamos rever essa idéia.
O Estalo Perceptual
Aposto que todos os leitores já ouviram falar (ou mesmo já tiveram) o famoso "aha!" ou o "eureka". São expressões que exprimem o momento em que as coisas se "encaixam" de um jeito ideal mostrando seu valor imediatamente. Chamo a isso de "estalo perceptual". Por que?
Porque esse estalo aparece devido ao nosso treinamento perceptual para reconhecer coisas valiosas. Quando as coisas se juntam, há um momento onde identificamos uma espécie de "objeto" como se tivessemos reconhecido a face de um velho amigo que não vemos há muito tempo. Na realidade, em termos neurocientíficos é exatamente isso o que ocorre. Essa é uma atividade essencialmente cognitiva e que mostra a importância de cultivarmos habilidades perceptuais.
Ainda há muito a se falar sobre este tópico e caso você esteja interessado em maiores informações, você pode me contatar no e-mail abaixo. Veja também a página do meu seminário sobre criatividade que trata desses assuntos com maior profundidade, em especial como podemos fazer para alterar as regras que conhecemos e assim obter maiores chances de estalos perceptuais.
Nós humanos somos os únicos seres inteligentes deste planeta capazes de uma profunda auto-reflexão. Para ser mais criativos, temos que levar esse auto-conhecimento um passo adiante. Temos que conhecer como funcionam nossos cérebros para poder não apenas nos deleitar com esse conhecimento, mas também para potencializar nossas capacidades e assim ampliar o alcance de nossas melhores intenções humanísticas.



Referências
Boden, Margaret A. (1994) What is Creativity?, in Dimensions of Creativity, M. A. Boden (editor) MIT Press 1994.
Brandimonte, Maria A.; Gerbino, Walter (1996) When Imagery Fails: Effects of Verbal Recoding on Accessibility of Visual Memories, in Stretching the Imagination, Cornoldi, Cesare (et al.) (editors) Oxford University Press.
Dominowski, Roger L.; Dallob, Pamela (1995) Insight and Problem Solving, in The Nature of Insight, Sternberg, Robert (editor), MIT Press.
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Glassman, William E. (1995) Approaches to Psychology. Open University Press.
Hofstadter, Douglas (1989) Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid. Vintage Books, NY.
Holyoak, Keith; Thagard, Paul (1995) Mental Leaps, Analogy in creative thought. MIT Press.
Johnson-Laird, Philip N. (1988) The Computer and the Mind. Harvard University Press.
Kaku, Michio (1994) Hyperspace. Oxford University Press.
Kellman, Philip J.; Arteberry, Martha E. (1998) The Cradle of Knowledge. MIT Press
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Navega, Sergio C. (1998) Artificial Intelligence as Creative Pattern Manipulation: Recognition is not Enough (paper available from the author: snavega@attglobal.net)
Navega, Sergio C. (1998) Artificial Intelligence, Children Education and the Human Brain (paper available from the author: snavega@attglobal.net)
Newell, Allen (1981) The Knowledge Level. AI Magazine 2(2) 1981.
Parker, Sybil P. (editor) (1992) Concise Encyclopedia of Science & Technology. McGraw-Hill, Inc.
Perkins, David N. (1994) Creativity: Beyond the Darwinian Paradigm, in Dimensions of Creativity, M. A. Boden (editor) MIT Press 1994.
Seifert, Collen M. (et al.) (1995) Demystification of Cognitive Insight: Opportunistic Assimilation and the Prepared Mind, in The Nature of Insight, Sternberg, Robert (editor), MIT Press.
Sekuler, Robert. Sensory Processes Course. Brandeis University.
Silvers, Robert (1997) Photomosaics. Henry Holt and Company, NY.
Tufte, Edward R. (1997) Visual Explanations, Images and Quantities, Evidence and Narrative. Graphic Press, Connecticut.
Weisberg, Robert W. (1988) Problem Solving and Creativity, in The Nature of Creativity, Sternberg, Robert (editor). Cambridge University Press.






http://www.intelliwise.com/seminars/criativi.htm

domingo, 19 de julho de 2009

Caso do Vestido



Carlos Drummond de Andrade

Nossa mãe, o que é aquele

vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido

de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?

Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.

Vosso pai vem chegando.

Nossa mãe, dizei depressa

que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo

ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,

está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido

tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai

palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,

vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,

se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,

se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,

bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,

foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.

Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,

dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,

lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.

Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,

a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência

e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?

Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai

chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos

pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei

aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse

de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,

me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele

se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,

não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,

os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,

os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,

de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia

as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,

me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,

mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,

passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,

não comia, não falava,

tive uma febre terçã,

mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,

fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,

costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,

meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro

pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.

O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba

me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,

com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,

não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.

Mas te dou este vestido,

última peça de luxo

que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,

da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,

ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado

confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.

Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,

no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,

me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,

me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,

rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:

vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa

que recorda meu malfeito

de ofender dona casada

pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido

e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,

quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,

quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha

delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados

com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,

boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus

nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho

e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.

Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido

e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.

Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,

era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado

e nem estava mais velho.

O barulho da comida

na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,

um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,

vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço

vosso pai subindo a escada.

Texto extraído do livro "Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora - 1985, pág. 157.

Criatividade que cai do céu!




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